top of page
Buscar

Crítica | 'Iracema: Uma Transa Amazônica': registro imortal do Brasil

Tudo que surge diante de uma câmera adquire significado. Nada escapa ao registro cinematográfico. Basta enquadrar a realidade para criticá-la. Em Iracema: Uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1975), é revelado um estudo antropológico sobre a Amazônia e sua lenta degradação pelo 16mm, com a câmera na mão explorando as margens da sociedade encobertas pelo projeto militar de expansão capitalista por meio da Transamazônica.

Para captar esse estudo, os realizadores optaram por uma abordagem estilística e narrativa documental, mesmo com a presença de personagens ficcionais, aplicando elementos formais conhecidos da linguagem, como zoom in e zoom out, chicotes de câmera em diálogos e até relatos. O estranhamento causado pelo primeiro contato com essa mistura de linguagens leva o espectador a tentar identificar o que é ficção e o que é documentário, mas é quando se aceita seguir essa viagem com os personagens que se reforça o poder crítico da obra. Pois o que assistimos é uma reprodução próxima da realidade, que ganha camadas por meio da espontaneidade da atuação amadora de Edna de Cássia (atriz de Iracema) e da presença de figurantes acidentais, que encaram a câmera e interagem com Paulo César Pereio (ator de Tião) como se fosse um velho conhecido. Em conversas corriqueiras, revelam suas dores como trabalhadores.

Frame do filme Iracema: Uma Transa Amazônica
Frame do filme Iracema: Uma Transa Amazônica

Além do caráter documental, é evidente o interesse em construir um filme-improviso, próximo ao que John Cassavetes fez em Shadows (1959), ao assumir uma narrativa metamórfica que se transforma em cada locação que a equipe decide filmar. Por encontrar justamente o que não se buscava, criam-se imagens dolorosas que atingem lugares que uma ficção planejada dificilmente alcançaria. Um exemplo é a cena em que Edna chora por "não querer ser índia", um momento real da própria adolescente que, por meio da montagem, ganha força dramática para a personagem.

Mesmo com uma estética hiper realista, Bodanzky e Senna usam Iracema: Uma Transa Amazônica para repensar os mitos fundadores do Brasil, especialmente o criado pela literatura ufanista, que idealizou a união entre indígenas e brancos por meio do amor. Como contraponto, a relação entre Iracema e Tião é marcada por violência, tanto moral, com ofensas constantes, quanto sexual, com uma adolescente se prostituindo diante da ilusão de estabilidade financeira. A história do Brasil foi, e continua sendo, marcada pela violência. Mesmo após séculos, as relações étnicas ainda repetem os mesmos conflitos e os mesmos desfechos.

Frame do filme Iracema: Uma Transa Amazônica
Frame do filme Iracema: Uma Transa Amazônica

É quase impossível terminar Iracema: Uma Transa Amazônica sem ser tomado por um sentimento agridoce, de não conseguir definir a obra com uma nota ou adjetivo. Sua frontalidade rompe barreiras morais e cinematográficas que poucos cineastas têm coragem de atravessar. Trata-se de repensar o Brasil fora da história oficial, de colocar a câmera na ferida aberta da América Latina, com o capitalismo ocupando o lugar do colonialismo.


Iracema: Uma Transa Amazônica é distribuído pela Gullane+ e estreia em 24 de julho


Texto: César F. P. Falkenburg

Revisão: Alice Faria

 
 
 

Comentários


  • Instagram
  • Instagram

©2023 por Embuscadefilmes. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page