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Crítica | 'Memórias de um Caracol': um retrato sincero sobre o nosso mundo

Atualizado: 23 de jul.

Há um momento na vida em que nos encontramos, em um dia qualquer, divagando sobre o passado, num fluxo de memórias de acontecimentos bons e ruins, uma retomada de um tempo imutável e distante. Essa pequena viagem mental raramente encontra uma finalização positiva, pois a retomada do passado é carregada de saudosismo e melancolia. Memórias de um Caracol se apropria justamente desse momento para desenvolver sua narrativa.

Frame do filme Memórias de um Caracol
Frame do filme Memórias de um Caracol

Memórias de um Caracol é a odisseia de uma pessoa desconhecida, sem grandes feitos ou transformações, cuja história dificilmente seria contada no mundo real, mas que recebe essa oportunidade na sétima arte. De início, espera-se que a vida da protagonista, Grace, seja contada sob um viés de total pessimismo, devido à estética influenciada pelas animações de Tim Burton e Henry Selick, marcada por uma terra arrasada, fria e imperfeita, onde os ambientes seguem sempre a mesma paleta de cores, criando uma uniformidade visual. Além disso, a obra já começa com a morte, instaurando um clima de melancolia, no qual toda a história é narrada como uma divagação em luto. Mas o realizador encontra pequenos lapsos de felicidade na saga de sofrimento da pequena garota, pela arte de rir da própria desgraça, por meio de inúmeras sequências com um humor ácido. Além da comédia, a personagem Pinky, uma senhora que a protagonista encontra repentinamente, é fundamental para aliviar o pessimismo construído até então. Ela funciona quase como uma guia espiritual para a menina, ensinando-a a experimentar acontecimentos que a afastam de sua própria mente e a fazem sentir-se novamente viva.  

Frame do filme Memórias de um Caracol
Frame do filme Memórias de um Caracol

Mesmo que esses recursos narrativos e visuais mantenham o público entretido até o final do longa, são elementos já conhecidos nas animações adultas, que perderam sua imagem como inovadores e atrativos. Portanto, o que torna a obra de Adam Elliot uma das animações mais interessantes desta década é sua sinceridade: primeiramente, pela construção artesanal em stop-motion, onde é quase possível ver as digitais marcadas nas massinhas rosadas, um carinho pela produção cinematográfica que se revela na maneira como são construídas as cenografias e personagens. Em segundo lugar, pela forma como apresenta o mundo sem as barreiras morais comuns nas animações, deixando claro que a vida é repleta de sofrimento, crises depressivas, dependências, traumas, preconceitos e violência. Mesmo quando utiliza simbolismos, por meio de uma decupagem e roteiro clássicos, eles são facilmente compreendidos na sua carga poética. A mensagem da obra é direta, não cria espaço para análises lúdicas, proporcionando uma experiência visceral, incômoda, mas que, no final, vale a pena ser sentida.

Após sair da sessão, minha amiga que me acompanhava perguntou o que eu achei da obra, e, de prontidão, meus sentimentos responderam: “gostei porque fala do nosso mundo; é dolorido, mas ainda é possível encontrar momentos de alegria”. Acabei por matutar essa resposta inúmeras vezes até começar a escrever a crítica, pois, ao falar da minha realidade, a análise que tentava desenvolver entrava em contato com minhas memórias mais profundas. Aquela personagem falando abertamente sobre sua depressão foi como me ver aos 11 anos novamente, quando, como ela, também me mantive preso em minha concha para evitar enfrentar o mundo. E, junto com ela, recebi aquela mensagem final, que me fez perceber que uma vida de passividade é uma vida de sadismo. É curioso que uma animação precise dizer, sinceramente, sobre a depressão e as dependências, palavra por palavra, para que nós, como público, também possamos observar com sinceridade como estamos lidando com nossa própria mentalidade.

Frame do filme Memórias de um Caracol
Frame do filme Memórias de um Caracol

Ultimamente, a escolha de uma abordagem frontal para expor a mensagem simbólica da obra é vista como um símbolo de fraqueza para muitos críticos, como se fosse preguiçosa ou básica. Mas é preciso muita coragem para abordar temas tão delicados sem se esconder em cortinas fantasiosas, para apontar com a câmera uma sociedade corrompida pelo tradicionalismo e pelos vícios, que adoece a população em uma pandemia silenciosa. A animação sempre foi conhecida como um formato destinado ao público infantil, mas Elliot mostra que pode ser uma forma poderosa de chamar a atenção para que os adultos parem de fugir de seus próprios problemas.


O longa estreia dia 05 de junho nos cinemas brasileiros.


Texto: César F. P. Falkenburg

 
 
 

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