Crítica "Mickey 17": um estudo sociológico absurdista
- César Plaggert
- 25 de fev.
- 4 min de leitura
A sociologia é uma ciência centrada no estudo da sociedade, que busca compreender como nós, humanos, nos relacionamos e nos organizamos em diferentes períodos históricos e culturas. Em Mickey 17, Bong Joon-ho assume a figura de um pesquisador, analisando e expondo as principais feridas dos Estados Unidos em sua cultura e política, utilizando a liberdade criativa que a ficção científica oferece.

É interessante notar que o diretor sul-coreano utilizou sua ascensão no Ocidente, com o sucesso de Memórias de um Assassino (2003) e a vitória de Parasita (2019) no Oscar de Melhor Filme, para se inserir em Hollywood e construir uma obra que expõe, de maneira irônica, um país fragilizado pela extrema direita, pelos ideais de ódio e pelo neoliberalismo. Tornando-se assim, um estrangeiro tirando a venda dos estadunidenses, mostrando como o mundo realmente os enxerga.
Em Mickey 17, acompanhamos Mickey, um homem que, devido à necessidade de fugir de uma grande dívida, voluntariamente se candidata à profissão de “descartável”, em que é utilizado como cobaia de experimentos em uma expedição espacial. Cada vez que morre, ele é reimpresso e tem sua dor explorada em prol de estudos científicos. Essa expedição, por sua vez, é comandada por um neonazista que busca colonizar um planeta habitado por pessoas de “sangue puro”, um ideal racista que reforça a crença na superioridade branca. Talvez, por essa descrição, imagine-se que o filme seja um drama político, mas Bong Joon-ho surpreende ao fazer o oposto, construindo a narrativa com uma comicidade absurdista.

O universo distópico do filme se distancia de uma lógica realista, apresentando personagens com ações exageradas e absurdas, levando o público, muitas vezes, a rir de choque diante do que se passa na tela — explosões, gore e figuras grotescas. A partir dessa abordagem percebemos com o passar do tempo que tudo se trata de uma grande fábula sobre os Estados Unidos. Em que o Comandante Marshall pode representar Donald Trump, sua esposa Gwen possivelmente representa os bilionários que financiam a sua campanha política, Mickey encarna a classe operária, e os Rastejadores fazem alusão aos imigrantes, vistos como sub-raças que devem ser “dominadas”. O diretor cria uma história ambientada em um futuro distante para que o público reflita sobre um fantasma que assombra o mundo contemporâneo: o neoliberalismo alimentado por figuras da extrema direita.
Ironicamente, o conflito central da obra se torna claro quando analisado sob a ótica marxista da luta de classes: um trabalhador oprimido por um sistema que o escraviza, forçando-o a executar tarefas sob a ameaça de burgueses que vivem em uma realidade de ostentação e prazer. A faísca da grande explosão revolucionária ocorre por meio de um duplo do próprio protagonista, o Mickey 18, que representa a externalização de todo o ódio reprimido pela personalidade dócil e frágil do personagem principal. Diferente de um antagonista tradicional, Mickey 18 se torna uma espécie de “lâmpada” que ilumina a consciência de Mickey sobre a opressão que sofre naquele sistema escravocrata, permitindo que ele se veja como indivíduo antes de ser uma mera ferramenta profissional.

Para reforçar essa fervorosa luta de classes de maneira estética, Bong Joon-ho utiliza um elemento presente na linguagem cinematográfica de Akira Kurosawa: o uso do clima para evidenciar as emoções dos personagens e seus conflitos. O planeta coberto de neve, explorado pela expedição, enfrenta nevascas cada vez mais intensas ao longo do filme, restringindo a nave a um pequeno espaço e reforçando a iminência de uma batalha sangrenta.
Outro elemento relevante para expor visualmente essa luta é a mise-en-scène. No início, há uma uniformização visual, sugerindo estabilidade sociopolítica naquela pequena sociedade, com figurinos semelhantes e uma iluminação “chapada”, sem grande profundidade. No entanto, à medida que a violência se intensifica na trama, essa harmonia se desconstrói: as roupas se rasgam, feridas se abrem e a iluminação se torna dramática, com forte contraste. A encenação funciona como mais um membro da tripulação, inicialmente silenciado pela sociedade, mas, conforme a trama avança, revela-se junto aos personagens que se rebelam contra o sistema e arriscam suas vidas por uma transformação social.
Talvez Mickey 17 sofra do mesmo fenômeno que Anora, que por ser um filme de abordagem cômica, sua crítica sociopolítica pode ser esvaziada pelo público, que está acostumado a ver Hollywood explorar esse tipo de tema de forma dramática. Entretanto, a comédia do longa se prova mais eficiente do que uma abordagem realista e dramática, pois sua crítica aos norte-americanos é exposta de maneira ácida e direta, usando o choque como ferramenta para conscientizar o espectador.
Boon Jong-Ho demonstra em Mickey 17 equilíbrio em trazer à sua obra uma estrutura comercial e que ainda dá liberdade em levantar questionamentos sobre o capitalismo e a padronização humana causada pela industrialização das relações sociais. Em um mundo em que nossas relações são construídas como uma fábrica, esse longa demonstra ter sido feito na hora certa.
O longa chega aos cinemas brasileiros no dia 06 de março.
Texto: César F. P. Falkenburg
Revisão: Alice Faria e Marcelo Silva
Commenti