Crítica | 'O Último Azul': uma fantasia da terra ancestral
- César Plaggert
- 21 de ago.
- 2 min de leitura
O cinema ganha força quando abriga conflitos internos em sua narrativa ou linguagem. Essa fricção provoca desconforto, curiosidade e expande a experiência para além da sala de exibição. Foi com esse pensamento que fiquei após O Último Azul (Gabriel Mascaro, 2025), obra que encontra sua potência justamente nas divergências que poderiam soar como fragilidades.
O grande conflito do longa, explicitado desde a sinopse, é o geracional, tema que ganhou relevância nos debates durante a pandemia de Covid-19, quando o isolamento social expôs o tratamento hostil a familiares idosos, muitas vezes vistos apenas como um empecilho financeiro. É prazeroso que Mascaro escolha tecer tal crítica social pela atmosfera e não de maneira discursiva, transformando as terras amazônicas em uma distopia controlada por um governo de aparência plástica e maximalista, que legitima o etarismo por meio de frases prontas divulgadas em rádios e faixas. Ao liberar a obra de uma rigidez discursiva, abre-se espaço também para o trabalho psicológico de sua protagonista, sensibilizando o espectador com suas dores para além de sua condição.

Tereza, com a rotina cíclica de uma operária, manteve-se em toda sua vida reprimida em realizar seus desejos, uma espécie de contenção invisível criada pelo sistema e alimentada por ela mesma. Mascaro utiliza O Último Azul para libertar a protagonista de si própria, lançando-a ao desconhecido e transformando uma personagem previsível, conservadora e pessimista em uma pessoa vaidosa, que prioriza sua felicidade acima de tudo. Certos signos que surgem durante a obra reforçam esse desejo do realizador, como o “Peixe Dourado”, referência sutil à mitológica cidade de Eldorado, que faz de cada viagem marítima de Tereza transformá-la em uma “Indiana Jones” no seu próprio filme de aventura.
Ainda que os conflitos narrativos sejam mais chamativos em um primeiro olhar, são as divergências presentes em sua linguagem cinematográfica que dão corpo ao longa. Mesmo que a mise en scène seja majoritariamente realista, com locações reais, iluminação natural e pequena movimentação de câmera, abrem-se pequenas brechas para o lúdico: sequências febris recheadas de sussurros do inconsciente, corpos suados, cores vibrantes e trilha sonora psicodélica, semelhantes às composições de Alain Goraguer para Planeta Fantástico (René Laloux, 1973). A fantasia brota da própria natureza, da gosma azul de um caracol, das curvas do rio, do peixe luminoso, evocando mitos originários onde a cura não nasce da humanidade, mas da terra ancestral.

Gabriel Mascaro se mostra um cineasta muito mais maduro em O Último Azul, consolidando seu projeto de realismo fantástico já embrionário em Boi Neon (2016). Suas reflexões críticas e experimentações estéticas são aplicadas sem pressa, dando tempo à construção dramática das personagens e à vitalização do espaço cênico. O resultado é uma obra sólida em sua proposta: um filme genuinamente sobre o Brasil, sem cair em representações genéricas desesperadas por uma “representatividade nacional”.
O Ultimo Azul é distribuído pela Vitrine Filmes e estreia em 28 de agosto.
Texto: César F. P. Falkenburg
Revisão: Alice Faria
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